quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Visita à Pinacoteca, em À Janela dos Dias – poesia quase toda

Livros envelhecem? Claro que não! Tenho provas disso diariamente o que não é nenhuma novidade para uma alfarrabista e, sobretudo, para uma leitora que encontra surpresas novas em velhos volumes.
Recebi, com grata surpresa, estes comentários críticos sobre o meu já “velhinho” À janela dos dias: poesia quase toda (Alpharrabio Edições, 2002) da amiga Márcia Plana, Mestre em Literatura e Crítica Literária (PUC-SP) que muito tem contribuído com os encontros do Sábados PerVersos, na livraria Alpharrabio, desde 2014. Márcia só agora leu o livrinho de 2002, ou seja, 14 anos após sua publicação e sua crítica bem reforça o slogan da Alpharrabio: “livro novo é aquele que você não leu”.

VISITA À PINACOTECA, EM À JANELA DOS DIAS: POESIA QUASE TODA, DE DALILA TELES VERAS
                                                             Márcia Plana




Pinacoteca é um museu que contém um acervo de pinturas, uma coleção de quadros, um guardado de cores e traços. Ler os poemas: À janela dos dias: poesia quase toda, de Dalila Teles Veras, é visitar uma pinacoteca, visto que seus textos são pinturas em imagens poéticas. Vale trazer, para este contexto, as palavras de Décio Pignatari: “Poesia está mais do lado da música e das artes plásticas do que da literatura”.

Assim, o livro é composto por oito obras, cada uma delas é aberta por uma parte da imagem da capa (1), como a janela de um mosaico. Uma a uma, a janela da poesia quase toda, nunca completa, sempre pronta a surgir, configurando-se em trabalho da palavra, um fazer-se poiesis tanto dos quadros que se apresentam à suavidade das coisas ou numa simples contação de história embebida de pincel e cores, num azul do cotidiano urbano.

À janela dos dias: poesia quase toda é uma pintura espelhada em dez figuras triangulares e uma dança de obras em oito passos, cada passo marca uma obra, inscrita por uma figura geométrica e uma epígrafe - Lições de tempo; Inventário Precoce; Elemento em fúria; Madeira: do vinho à saudade; Forasteiros registros e nordestinos; A palavraparte; Alguns poemas dispersos e Inéditos.
Neste contexto luz, cor e geometria, partem do inteiro para as partículas e avança o olhar no rosto da mulher no triângulo do aparente último quadro, possibilitando o encerramento do livro ou o retorno para a reiniciar. Desta forma, a janela está aberta e parece permanecer aberta, para a entrada de leitores. Há muito que se pintar, que se contar nos olhos que saltam para além da página, porque a poesia se encontra no ar, nos espaços inimagináveis de um livro, pula e salta para um corpo vivo em performance ou se instaura como matéria inventiva de quem tem nas mãos, segundo João Cabral de Melo Neto, a pedra indestrutível, imóvel, a mesma, palavra a ser trabalhada com rutiliza e sutileza no odor suadíssimo do poetar.
Tanto que inicia o conjunto da obra com a citação de Carlos Drummond de Andrade “O problema não é inventar./ É ser inventado hora após horas/ e nunca ficar pronta nossa edição convincente”. É agora função do leitor olhar com sensibilidade a coleção de pinturas, como em Lições de tempo, que pinta os tempos imateriais em mistura de tempos, até germinar o tempo que se cumpre. Seus poemas parecem captar o momento de um instante, como fotografar as coisas para lhe atribuir vida poética no espaço impresso da página. Toma-se como exemplo este Inocência.

INOCÊNCIA

Pés a sentir os trigais
pele a refletir dourados
olhos a traduzir luz

Corriam

Eram apenas corpos
perdidos em sua limitação
na relva a colher papoulas
: sangue salpicado no trigo ardente

Era preciso o saber?

Era preciso saber? É preciso saber... quanta pintura, quantas cores, designam a luminosidade de uma imagem com respingo fanopaico. É desta forma que Pound se faz presente nos poemas de Dalila. Sem falar da movimentação, que foge da imagem parada, marcada pelos pés, pele e olhos que corriam, eram corpos perdidos, a colher papoulas, sangue salpicado. As aliterações em “S” e “P” reforçam o som da imagem do trigo ardente, bem como as sinestesias nos pés dos trigais perpassam a pele como luz e tinta, processo do trabalho árduo de sua construção poética.

O ritmo caminha para o inventário de sua arte poética. São pinturas nas primeiras páginas, respingado por tinta/palavra/poesia e uma pincelada de elementos memorialísticos com índices frequentes como perfil, o legado, a descoberta, no 8 de março, no renascer na balada finalística a imagens dos caminhos, dos trilhos: a dança. Trabalho consciente de quem utiliza as palavras para produzir arte. Paul Valery evidencia ao notificar a dança como poesia. Esta aparece claramente no bloco de anotações - Madeira: do vinho à saudade, um retrato poético que pronuncia uma história que não quer ser contada, mas deseja ser apresentada com vigor de obra plástica e performática. Assim, pinta a Videira, caleidoscópio, um aparelho óptico “vítreo” que mostra a imagem dos “homens e suas pesadas botas e a embriaguez”, bem como Vindima e seus Coadjuvantes. São versos: “O dia chegou claro...”, “Era belo o meu avô”, “Venho sonhando contigo”, uma mistura de imagens, cenas do retrato do cotidiano: suores, pés lavados, lépidos  e leves dançam, ... só os pés guardam as tintas do final do vindimar, de seu trabalho com as palavras. A arte com a linguagem se configura em metalinguagem na obra. 

Seus poemas, não ficaram apenas na seleção de livros anteriores. Estes, reescritos, se revigoram, desejam ser rememorados sempre. Assim, detém a última parte aos inéditos com leitura dos improvisos e anotações de viagens e uma invasão de falsos haicais, que notifica a sutileza da concisão, para armazenar a poeticidade em mínima quantidade de palavras. Sem ser haicai busca a percepção de captar a imagem e o momento em movimento poético, o momento da lembrança requisitada no instante tingido por palavras. Atribui seus poemas inéditos como falsos haicais, porque.... Pinta sem lápis de cor a vida. Seu artifício é a palavra em pauta de quem experimenta os momentos vividos com paixão. Convida-nos a abrir a janela e ver a vida nascer de um ponto, um traço, um som... de tudo e nada em seus poemas.

Seus poemas não querem que se falem deles, mas que se possa sentir e reviver cada imagem como um quadro vivo de luz e traços: o oficio de criar é rito/ a trajetória de viver é risco/ a missão da arte é ofício. E este ofício deita-se tanto para Dalila Teles Veras quanto para seus leitores que tornam a leitura um processo interminável. 




(1) Capa de Isabela A. T. Veras

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