quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

solidões da memória – notícias e impressões de leitura – VII

Nesta sétima postagem da série que recolhe notícias, críticas e impressões de leitura do meu livro “solidões da memória”, uma opinião crítica da escritora portuguesa Irene Lucília, publicado no Funchal Notícias, coluna “a opinião de Irene Lucília”, sob o título “Rizoma”




Chegou-me às mãos. Assim poderão começar as histórias dos acasos que nos revelam factos inesperados; ou as histórias das dádivas dos amigos que nos fazem chegar lembranças, emoções, coisas que nos despertam, nos acordam para sonhos antigos, ou interesses comuns. Deste modo, aconteceu ter eu recebido no último Natal, (apesar dum certo atraso, por vicissitudes das Caixas Postais) um pequeno livro com um conteúdo denso de memórias e saudades. O título diz-nos logo o que poderemos encontrar lá dentro: “Solidões da Memória”, assinado por Dalila Teles Veras. Era mais um livro desta autora, alguém que a vida marcou por um rizoma de montanha, mar e distância, que é como se pode definir o ilhéu que abarca o horizonte e procura o mundo largo para viver. “Solidões da Memória”, um plural sintomático, compõe-se de vinte e sete poemas, distribuídos por quatro capítulos, (agrada-me dizer, quatro fases de solidão), que percorrem uma viagem, tempo de procura entre a ilha da Madeira e o Brasil; e parte duma “caderneta de anotações” datada de 12 a 21 de Maio de 2012. Este conjunto dá corpo ao “Rizoma” mencionado pela autora e enforma todo o livro, que se completa com quinze expressivas fotografias de paisagens e motivos insulares. Releve-se a capa, que se veste com uma bela calçada madeirense de calhaus rolados em espiga.
Dalila Teles Veras, vive no Brasil, fez dos livros o seu programa de vida, com algumas obras já publicadas e visita-nos de vez em quando. A ilha, porque a viu nascer, encheu-lhe a alma de mar, espaço e largueza atlântica que a tornaram (talvez) fazedora de onirismos, esses que transpõe para a sua escrita e agora uma vez mais me chegam dentro de páginas evocativas de uma infância que reclama sempre, para que não se perca a sua iluminação inicial… ainda que “o silêncio da ilha ( seja) quase tumular” : “ a ilha, nem/ ilha era/ o mar/ a nesga/ ao lado e à frente / a ilha, não/ tinha fim nem / começo, rosário/ de sal ao pescoço…(fortificada ilha.)”
Sendo assim Dalila recorda, para “recriar”: os lugares “que já não são”, os nomes, as pedras, os lombos, as lombadas, os livros antigos, “ versos de outros bardos”, a saudade, as vinhas, os trigos, o moinho. “ Investigo, cavo busco anoto…eu que só vi o plantio e rega com olhos meninos, não julgo, apenas ouço e escavo a ver se descubro o rizoma, provavelmente perdido em largas águas e ares navegados no tempo… o sonho recorrente da viagem, o mar e os ares em permanente convite”. É este envolvimento que, pretendendo romper, Dalila amplia nos versos, para que tudo retorne à luz e a defina de corpo inteiro. E diz: …” o mar invade os sentidos, especialmente pelo olfacto e o olhar. Mas é o subterrâneo que me interessa. O que dessa raiz permanece em mim e em que medida interferiu no que hoje sou.”
Dalila Teles Veras recupera a ilha através duma nomenclatura exaustiva: A acidentada orografia das fajãs, pauis, calhetas, picos, lombos, serrados, achadas, calhaus, furnas; embriaga-se de nevoeiros, silêncios, boal, malvasia, sercial, sidra, poncha; invade os jardins de estrelícias, antúrios, orquídeas, enreda-se na laurissilva, experimenta a vertigem das falésias. Está bem viva dentro dela esta paisagem multiforme que o livro desvenda.
E ainda que o longínquo Brasil se tivesse insinuado pelo “cheiro despudorado do abacaxi que tudo anulava”, permanecem sempre na menina distante, o gosto e o cheiro da mesa do passado: a mesa/ a mesa-gesto/ ritualístico/o mesmo das mãos que um dia/também me embalaram./ pão e herdade/ repartidos, aromas/ e nomes/ epifanias/ gustativas/ presença e gozo/ relicário.”
Tudo isto é “…a memória do que não foi/ mas poderia… lembranças claras de ver e sentir” Por isso, duas pátrias se afirmam no coração de Dalila : Brasil e Portugal.
Por efeito da “infância submersa na líquida travessia”, “Vez por outra/ o atlântico deposita/ossos datados/ nas terras do exílio.” Certeza do que não volta à vida, mas se desenha, nítido, no respirar da memória.

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