sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

solidões da memória – notícias e impressões de leitura – IV

Neste novo registro (o IV) de impressões críticas e notícias sobre meu livro “solidões da memória”, um texto do jovem crítico Diego Mendes Souza, publicado no Portal ProParnaíba, em 05.2.2016, sob o título “Casalma de Dalila Teles Veras”: CLIC AQUI

Solidões da Memória (2015) de Dalila Teles Veras é um salto do passado para dentro do próprio Tempo, a recolher as lembranças da infância, ao sopro das memórias da casalma (casa e alma), da raiz, no coração onde se nasce, donde se vem.
O título do livro é uma ressurreição dos versos de Raul Bopp, poeta máximo que escreveu inspirado: Saudade é uma revivescência/ Solidões da Memória/ coisas que ficaram no outro lado do mar.
Dalila Teles Veras levanta o seu estro refinado, com impregnação de mar e saudade, a reviver todas as coisas que se foram. Sua poesia é forte, a carregar na cartografia insular da vida, a passagem da aventura e da travessia, que leva também ao regresso de nós mesmos: contemplar, ecoar e nomear tudo o que é registro de uma existência eletiva e onírica nos seus silêncios mais fundos.
Poesia madura, ponto alto de colheita e educativa, no ideal de busca, pois viver é buscar-se no infinito.
Solidões da Memória foi o primeiro grande livro que li, feito com verdade e sabedoria, neste começo de ano chuvoso, e, por isso mesmo, melancólico.
Solidões da Memória é um repertório erudito que evoca a eternidade de excelentes autores, como Murilo Mendes e Sophia de Mello Breyner Andersen.

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 confidência de madeirense
                           Alguns anos vivi em Itabira.
                           Principalmente nasci em Itabira.
                               Por isso sou triste,
                                        orgulhoso: de ferro.
                                                   Carlos Drummond de Andrade


alguns anos vivi na madeira
principalmente nasci na madeira
por isso sou melancólica, teimosa: urze
de nascença, em luta frente às intempéries
(do solo, do vento e das vagas marítimas)
alma em permanente desassossegar

da madeira nada de material veio comigo
e não há nada que eu possa ofertar
mas da madeira vem este ar atrevido
a língua maldicente e áspera
e o hábito de tudo reclamar
atavismos que a consciência, por vezes
                             rejeita

a madeira não é apenas fotografias
é a memória real dos precipícios
                    e das vertigens
encordoamento
       do que não parecia lembrado
                     mas é
a memória do que não foi
                   mas poderia
e sequer dói

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rizoma 
              Vestígios de pegadas nas areias,
                     restos d'ossos roídos e d'espinhas
                                              António Barahona

a infância e a memória
da infância, submersa
na líquida travessia

vez por outro
o atlântico deposita
ossos datados
nas terras do exílio

(a menina antiga
recebe os sinais
códigos esquecidos
legendas para o lembrar
- revivências)

a memória da infância
é a memória possível
(e só à poesia cabe recriar)

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ilha 
           Em sal espuma e concha regressada
                à praia inicial da minha vida
                           Sophia de Mello Breyner Andersen


a ilha, nem
ilha era (o mar
nesga
ao lado e à frente)

a ilha, não
tinha fim nem
começo, rosário
de sal ao pescoço

a ilha, o espaço
do jardim, calcetado
de seixos e
ervas de permeio

a ilha, o curto
caminho de casa
à escola
visconde cacongo

a ilha, o longo
percurso da escola
à casa
(fortificada ilha)
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Esta obra foi inventada após uma viagem de Dalila Teles Veras à Ilha da Madeira, Portugal. Um passeio criativo que ela anotou em sua caderneta de paisagens apreendidas, anexa ao livro, onde descobrimos a origem dos poemas presentes em Solidões da Memória.
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educação eletiva
        Alguém te contempla
             Desde antes do tempo começar
                            Murilo Mendes

a tia

(sempre haverá uma tia, na
vida de todos os seres viventes
não qualquer tia
mas aquela, para além do sangue,
            a eleita
   antes mesmo de o ser
aquela que contempla
 e enxerga o escuro
     aquela que sabe
da dor e da fome
e, garras à mostra
  afugenta intrusos
          acode
agasalha
        acalenta
afinidade eletiva
antes mesmo de
  qualquer começo)

sim, a tia
como esquecer?

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marinhas 
               Mas, se vamos despertando
               Cala a voz, e há só o mar
                          Fernando Pessoa
                                            

havia manhãs
em que, ao abrir da janela
era só o mar e o mar
                        o mar
                        o mar
                        o mar
aqui e além, barcos
quebravam em dois
o azul
inauguravam o branco
desenhavam a espuma

e não havia palavras
só as ondas
     as ondas
     as ondas

via, ouvia
         calava

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bagagem 
             de lado a lado
                    a casa é uma viagem
                                Irene Lucília Andrade

haveria de ser grande e bonito
o baú encomendado ao tio
madeira coberta por folhas de flandres
tachas reluzentes e batique florido
(abrigar os pertences
resistir às intempéries atlânticas
e, por fim, servir de móvel
no destino novo)

ali, na austeridade da arca
a casa
reduzida ao essencial

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casa 
         Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas
                                José Paulo Paes

morta a dona
morta a casa

morta a casa
morta a memória

morta a memória
morta a memória da memória

morta a memória da memória
o vazio da casa
morta
deixada morta
pela morta que a deixou

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contemplação     

                Ó céu azul - o mesmo da minha infância-
                Eterna verdade vazia e perfeita!
                        Fernando Pessoa  

à varanda
     : o oceano
em verdes e azuis
adornado

a imensidão ondulada
(mar a confundir-se céu)
segue nos tempos
(este, mais o da lembrança)
nunca a mesma
nem aquela que a contempla



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